sábado, 19 de junho de 2010

A paranoia americana

Foto: Divulgação
Terrorista do caso Virginia: pressão da sociedade eclode em violência

Um contador desempregado passa a noite em claro jogando golfe na sala de seu apartamento quando ouve um barulho do lado na rua. É seu vizinho árabe, jogando o lixo pra fora as três da manhã. Ele acha estranho, mas ignora e continua seu jogo. No dia seguinte, passa a observar o vizinho e, ao ver atividades “suspeitas” (como receber caixas de outros árabes, usar telefones públicos longe de casa, ouvir musica muita alta, etc.) deduz que o outro pode ser um terrorista e resolve ligar para o FBI. O órgão federal não lhe dá atenção, e nem sua esposa, levando o contador a agir por conta própria.

Esse é o enredo do filme “Paranoia americana” (Civic duty, 2006), mas não está muito longe da realidade dos norte americanos. Após os atentados de 11 de setembro de 2001 e a cobertura massiva da mídia, a paranoia deste povo, que já existia há décadas, aumentou consideravelmente. O egocentrismo presente na sociedade americana e o crescente senso de individualização (por sinal, tendência observada a nível mundial) faz crescer o medo do outro, do “inimigo”, figura sem rosto e sem corpo, que pode ser qualquer um, inclusive o seu aparentemente inofensivo vizinho.

Paranoia é um termo utilizado por especialistas em saúde mental para descrever desconfiança ou suspeita altamente exagerada ou injustificada. Numa sociedade como a norte-americana, onde o medo é bombardeado no sistema nervoso das pessoas, tanto pela mídia quanto pela organização social, a paranoia se instala facilmente, embora nem sempre seja óbvia e escancarada. Entretanto, basta um empurrãozinho para que ela se concretize.

Foto: Divulgação
"Paranoia Americana": personagem neurótico suspeita de seu vizinho árabe


O contador do filme americano era uma dessas pessoas bombardeadas pela mídia por notícias de ataques terroristas, imagens de violência, fotos de terroristas espalhadas nas ruas e propaganda pró-guerra. As sociedades atuais, como já citado, concentraram-se nos direitos individuais do cidadão, o que enfraqueceu o conceito de coletividade e solidariedade. Esse tipo de sociedade cria indivíduos auto-centrados, que se preocupam apenas com sua própria liberdade e direitos e, apesar disso, esperam que os outros se submetam a eles. São invejosos e ao mesmo tempo sentem-se vitimizados pelo inimigo invisível.

Chamada por Lasch de “A cultura do narcisismo” em seu livro homônimo, essa civilização se traduz mais tarde num emaranhado de pessoas solitárias, que pouco possuem laços com as redes sociais ao seu redor. A individualização excessiva torna-os massificados, solitários e amedrontados, embora estes se acreditem livres. Essa liberdade vale também para a segurança: esses indivíduos pensam que é seu dever e direito se proteger sozinhos. Nos Estados Unidos esse direito é apoiado pela constituição, que garante o direito à defesa pessoal.

Esses fatores somados podem ser apontados como causa de uma grande mania americana: as armas. Lá, é absurda a facilidade de se obter uma arma. Muitos americanos tem coleções, e vários tipos de munição são vendidos em lojas de departamento e supermercados. Em 43 estados americanos não é necessário licença ou registro para obter uma arma e em seis deles não há idade limite para a obtenção. Segundo a famosa Segunda Emenda da Constituição norte-americana, “sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido."

Foto: Divulgação
Columbine: imagem da câmera de segurança do colégio


Num país onde boa parte dos cidadãos vive em estado de sítio auto-instituído e cerca de 34% da população possui armas de fogo, não é difícil perceber o nível de paranoia. Episódios como os massacres de Columbine, em Jefferson, Colorado, onde dois estudantes de 17 anos mataram 13 pessoas, feriram 21 e se suicidaram em seguida, e da Virgínia, quando em 2007 um estudante de 23 anos deixou 32 mortos (ele inclusive) na Universidade de Virgínia, mostram o grau de perturbação numa sociedade em que a violência não só é noticiada constantemente, mas é também glorificada como meio de autodefesa. É um ciclo vicioso. O medo gerado pelas constantes ameaças, imaginárias ou não, acaba isolando os cidadãos e tornando-os egocêntricos, o que os faz acreditar que a solução é a autodefesa, apoiada pela constituição, gerando ainda mais violência.

Tal paranoia do povo americano serve para provar o poder da imagem. Vivemos hoje numa sociedade bombardeada por imagens em todas as instâncias da vida. TV, internet, jornais e revistas, propagandas e artigos publicitários, servem-se da imagem para vender ideias, conceitos e produtos – inclusive a violência e o medo. A imagem é o mais próximo que temos do real, é a representação, embora não a verdadeira, do fato. Ao ver uma imagem de um acontecimento como os ataques de 11 de setembro ou o massacre de Columbine, sentimos como se estivéssemos presentes e nos identificamos emocionalmente com a situação, formando um elo que, sem aquela representação, não seria tão forte ou não existiria. A pesquisadora Maria Rita Kehl, ao falar sobre o poder da imagem, diz: “São nossos olhos, multiplicados aos milhares, que fazem a aura da imagem industrializada. Ela nos fascina na medida exata em que reproduz nossa alienação”.

Embora a paranoia americana (que não é restrita aos EUA, porém aconteça em escala menor em outros lugares) e suas causas esteja comprovada por diversos estudos, vale lembrar que ela não é generalizada. Como todo fenômeno, ela também possui sua resistência. Exemplo dela é o famoso documentarista americano Michael Moore, autor de “Tiros em Columbine” (Bowling for Columbine, 2002), documentário que aborda justamente a questão da paranoia americana e que serviu de fonte para esse texto. Moore nasceu e cresceu dentro da sociedade que retrata em seu filme, porém tenta "combatê-la" através de seus filmes e livros, além de ações práticas perante o governo dos Estados Unidos, esperando desenvolver em seu público um maior senso crítico sobre o grupo a que pertence. Assim, pode-se perceber que é possível o retorno à uma sociedade saudável e pautada nos valores coletivos, não só nos Estados Unidos como no resto do mundo.

Por Kíssila Machado

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